Herança com Testamento é uma das formas mais confiáveis de organizar a transmissão do patrimônio, reduzir conflitos e garantir que sua vontade seja respeitada. Mas até onde vai a liberdade de quem testa e quais regras precisam ser seguidas para que a partilha seja válida? Neste artigo, explico de forma prática como funciona a partilha quando existe testamento, quais são os limites legais e o que fazer, passo a passo, para evitar dores de cabeça para a família.
Nesse post:
Herança com Testamento: o que é e como funciona
Quando falamos em herança com testamento, estamos tratando da sucessão em que a pessoa falecida deixou um documento válido indicando quem receberá seus bens, em que proporções, e com quais condições. Testamento é um ato pessoal e revogável. Ele só produz efeitos após a morte e pode ser alterado a qualquer momento enquanto o testador tiver discernimento.
O testamento convive com a lei sucessória. Em outras palavras, a vontade do falecido vale muito, porém precisa respeitar regras mínimas de proteção à família e à ordem pública. É aí que entram os herdeiros necessários e a legítima, que limitam a liberdade de dispor de todo o patrimônio.
Quem são os herdeiros necessários e qual é a “legítima” de 50 por cento
A lei brasileira protege um núcleo familiar essencial chamado herdeiros necessários. São eles: descendentes, ascendentes e o cônjuge. Para esse grupo, a lei reserva metade da herança, chamada de legítima. Esta metade pertence a eles de pleno direito e não pode ser afastada pelo testamento.
Essa proteção funciona assim:
- A metade da herança vai, obrigatoriamente, para os herdeiros necessários.
- A outra metade é a parte disponível, que pode ser livremente distribuída no testamento, inclusive para pessoas ou instituições que não são herdeiras.
- O testamento não pode incluir a legítima entre as disposições, justamente por ser parcela reservada por lei.
Quanto o testador pode dispor livremente
Em regra, 50 por cento do patrimônio é de livre disposição. É nessa faixa que o testador pode premiar alguém, fazer doações póstumas, estabelecer legados específicos, instituir usufruto para uma pessoa e a nua-propriedade para outra, entre outras possibilidades.
Limites legais do testamento: o que pode e o que não pode
Apesar da liberdade na parte disponível, há limites importantes.
Cláusulas sobre os bens e quando elas valem
O testador pode impor cláusulas como inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade sobre bens que legar ou que estejam na parte disponível da herança. Sobre a legítima, só é possível impor essas restrições se houver justa causa expressa no próprio testamento.
Além disso, a cláusula de inalienabilidade normalmente traz, por arrasto, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade. Se for autorizado judicialmente vender o bem clausulado, o valor deve ser convertido em outro bem que ficará sujeito às mesmas restrições.
Deserdação e indignidade
Em situações graves, um herdeiro necessário pode ser deserdado no testamento, desde que o motivo esteja previsto em lei e seja explicitado no documento. Exemplos: ofensa física grave, injúria grave, abuso contra o ascendente, entre outros. Há também as hipóteses de indignidade que excluem alguém da sucessão, como homicídio doloso contra o autor da herança. Em qualquer caso, o motivo precisa estar amparado na lei e a sua ocorrência pode ter de ser provada judicialmente.
Quem pode fazer testamento e quais são os tipos
Capacidade para testar
Pode testar quem tem pleno discernimento no momento de testar. A lei permite o testamento a partir dos 16 anos de idade.
Formas ordinárias de testamento
A lei brasileira prevê três formas ordinárias de testamento. Todas são válidas, mas cada uma exige formalidades próprias:
- Testamento público: lavrado em cartório de notas, com leitura em voz alta e assinatura do testador e de testemunhas. É a forma mais segura e a mais difícil de ser anulada, pois fica registrada no livro do cartório.
- Testamento cerrado: escrito pelo testador ou por outra pessoa a seu pedido, fechado e entregue ao tabelião perante testemunhas para aprovação. Só é aberto após a morte, em juízo.
- Testamento particular: escrito pelo testador, de próprio punho ou por processo mecânico, na presença de testemunhas. É válido, porém costuma exigir confirmação judicial mais cuidadosa.
Há ainda testamentos especiais para situações específicas, como o marítimo, o aeronáutico e o militar, usados em viagens ou em contextos de guerra.
Partilha da herança com testamento: como acontece na prática
A herança com testamento segue um roteiro básico, com variações conforme o caso.
1. Localizar e confirmar o testamento
Familiares e advogados costumam consultar as centrais notariais para verificar a existência de testamento, o que ajuda a impedir que a última vontade seja ignorada. O CNJ estabeleceu regras para checagem da existência de testamentos no Registro Central de Testamentos On-line e para a circulação dessa informação entre os órgãos, justamente para garantir o cumprimento das disposições de última vontade. Portal CNJ
2. Abertura e cumprimento do testamento
O testamento sempre passa por abertura e cumprimento em juízo. Nesse momento, o juiz verifica a regularidade formal e manda cumprir as disposições, salvo vício evidente.
3. Inventário: judicial ou extrajudicial quando há testamento
Regra geral do CPC: se houver testamento ou interessado incapaz, o inventário será judicial. Essa regra ainda está no texto da lei.
Contudo, há evolução importante na via administrativa. A Resolução CNJ 571/2024 autoriza inventário e partilha extrajudiciais por escritura pública mesmo havendo testamento, desde que cumpridos requisitos, entre eles: autorização expressa do juízo sucessório após a ação de abertura e cumprimento do testamento, todos os interessados capazes e concordes, além de representação por advogado. Se houver incapaz, aplicam-se salvaguardas adicionais.
Na prática, isso significa agilizar casos simples, sem perda de controle judicial sobre a validade do testamento.
4. Apuração de dívidas, recolhimento de tributos e pagamento de legados
Antes de partilhar, avaliam-se dívidas do espólio e calcula-se o ITCMD conforme as regras do estado. Depois se pagam os legados e se define a partilha, sempre respeitando a legítima.
5. Partilha e registro
Definidas as quotas, os bens são partilhados e levados a registro nos cartórios competentes. Em imóveis, registra-se no Cartório de Registro de Imóveis; para cotas societárias ou veículos, seguem-se os órgãos próprios.
Cônjuge e companheiro na herança com testamento
No Brasil, o cônjuge é herdeiro necessário e tem proteção legal na sucessão, inclusive com direito real de habitação sobre o imóvel residencial do casal quando ele é o único do acervo. Isso vale independentemente do regime de bens, além da quota hereditária que lhe caiba.
Quanto ao companheiro em união estável, o STF afastou as diferenças de tratamento em relação ao cônjuge. Hoje, para fins sucessórios, companheiro e cônjuge recebem tratamento equivalente, o que impacta diretamente a partilha quando existe testamento.
Atenção para um detalhe comum: o regime de bens e a existência de bens particulares influenciam a concorrência com descendentes e ascendentes. Em comunhão parcial, por exemplo, o cônjuge normalmente não herda sobre bens comuns que já lhe pertencem por meação, mas concorre sobre bens particulares do falecido, observadas as regras dos artigos da sucessão legítima.
Como o testamento dialoga com doações em vida, legados e usufruto
O testador pode:
- Instituir legados de bens específicos.
- Separar usufruto para alguém e nua-propriedade para outra pessoa.
- Dispensar colação quando houver doações anteriores para um herdeiro, dentro da parte disponível, para evitar igualação na partilha.
Tudo isso funciona melhor quando a redação do testamento é clara e respeita a legítima, para que não haja necessidade de redução das disposições que extrapolarem a parte disponível. Senado Brasileiro
Exemplos práticos de partilha com testamento
A seguir, cenários fictícios que ilustram como a conta fecha.
Exemplo 1: dois filhos e cônjuge, comunhão parcial, bens particulares
Patrimônio do falecido: 1.000. Sem dívidas. Dois filhos. Cônjuge sobrevivente casado em comunhão parcial. Existe testamento destinando 30 por cento da herança a um sobrinho.
- Legítima (50 por cento): 500 para herdeiros necessários. Divide-se entre cônjuge e dois filhos conforme a concorrência aplicável sobre bens particulares.
- Parte disponível (50 por cento): 500. O testamento pode alocar 300 ao sobrinho e os 200 restantes a quem o testador indicar. Se o testamento tentar usar mais que 500, haverá redução.
Exemplo 2: companheira e um filho
Patrimônio do falecido: 800. Existe união estável reconhecida e um filho do casal. Testamento destina 50 por cento para uma instituição.
- Legítima: 400 para herdeiros necessários. Companheira e filho concorrem.
- Parte disponível: 400 para a instituição. A validade desse destino depende apenas das formalidades e da inexistência de ofensa à legítima. Supremo Tribunal Federal
Exemplo 3: sem herdeiros necessários
Patrimônio do falecido: 600. Não há descendentes, ascendentes nem cônjuge.
- O testamento pode destinar 100 por cento a amigos, instituições ou outros parentes. Se não houver testamento, a ordem legal chamará colaterais e, inexistindo, a herança será devolvida ao poder público competente, conforme o local do bem. Senado Brasileiro
Erros que mais atrapalham a herança com testamento
- Escrever disposições vagas, sem identificar bens ou pessoas com precisão.
- Ignorar a legítima e extrapolar a parte disponível.
- Tentar impor cláusulas sem indicar a justa causa quando se tratar da legítima.
- Não providenciar abertura e cumprimento do testamento antes da partilha.
- Deixar de avaliar dívidas e tributos antes de distribuir os bens.
Como fazer um bom testamento que resista no tempo
- Escolha a forma mais adequada ao seu caso. Em geral, o testamento público é o mais seguro. Senado Brasileiro
- Deixe clara a parte disponível e respeite a legítima.
- Especifique bens e percentuais. Em patrimônios variáveis, prefira percentuais a valores fixos.
- Se quiser impor cláusulas, avalie a justa causa, principalmente quando incidir sobre a legítima. Senado Brasileiro
- Pense em planos de contingência: e se o beneficiário falecer antes de você? A lei tem regras de substituição e de acréscimo entre herdeiros e legatários. Senado Brasileiro
- Guarde o testamento de forma que possa ser facilmente localizado. A existência do ato pode ser comunicada às centrais notariais. Portal CNJ
Perguntas frequentes:
Posso deserdar um filho?
Em hipóteses legais específicas e com motivo expresso no testamento. Depois, o motivo pode precisar ser provado em juízo.
Posso deixar o usufruto vitalício para meu cônjuge e a nua-propriedade para os filhos?
Sim, desde que tudo caiba na parte disponível. Se incidir sobre a legítima, só com justa causa
Há diferença entre cônjuge e companheiro na sucessão?
O STF equiparou o tratamento sucessório. As diferenças que existiam foram afastadas
Posso fazer inventário em cartório mesmo com testamento?
Hoje é possível em hipóteses bem definidas pela Resolução CNJ 571/2024, que exige, entre outros pontos, autorização judicial após a abertura e cumprimento do testamento, além de todos os interessados capazes e concordes
Quem tem direito de morar no imóvel da família após o falecimento?
O cônjuge sobrevivente possui direito real de habitação quando o imóvel residencial é o único desse tipo no inventário.
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Checklist final: o essencial da herança com testamento
- Herança com Testamento respeita a legítima de 50 por cento e usa a parte disponível para premiar quem o testador quiser. Senado Brasileiro+1
- Testamento pode ser público, cerrado ou particular, cada um com suas formalidades. Senado Brasileiro+2Senado Brasileiro+2
- Cônjuge é herdeiro necessário e tem direito real de habitação no imóvel familiar único. Companheiro tem tratamento equivalente ao cônjuge por decisão do STF. Senado BrasileiroSupremo Tribunal Federal
- Em regra, inventário com testamento é judicial, mas a Resolução CNJ 571/2024 permite via extrajudicial em situações específicas. Senado BrasileiroAtos CNJ
- Cláusulas como inalienabilidade podem ser impostas e trazem efeitos práticos, mas sobre a legítima exigem justa causa. Senado Brasileiro+1
- Deserdação e indignidade existem, mas dependem de fundamento legal e prova quando contestadas. Senado Brasileiro
Conclusão
Herança com Testamento combina liberdade de escolha com proteção familiar. Quem testa pode organizar a parte disponível de forma estratégica, criar legados, instituir usufrutos e até impor cláusulas de proteção, desde que respeite a legítima e as formalidades. Na partilha, cônjuge e companheiro têm salvaguardas, e hoje há caminhos mais ágeis, como o inventário extrajudicial em casos que a norma autoriza. Com um bom planejamento, a sucessão deixa de ser uma fonte de conflitos e passa a refletir, com segurança, a vontade de quem partiu.