A partilha de bens em casos de violência doméstica é uma das situações mais delicadas do Direito de Família. Quando há agressões físicas, psicológicas, morais, sexuais ou patrimoniais, a separação não é apenas emocional ou jurídica, ela se torna uma questão de proteção e sobrevivência.
Muitas mulheres (e também alguns homens) enfrentam o medo de perder o direito sobre os bens do casal ao decidir se afastar de um relacionamento abusivo. Mas será que a violência doméstica interfere na forma como os bens são divididos?
E mais: é possível impedir que o agressor se beneficie do patrimônio construído durante a união?
Nesse post:
Neste artigo, vamos entender como a lei brasileira trata a partilha de bens em contextos de violência, o que diz a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), quais as medidas de proteção disponíveis e como o Judiciário costuma decidir nesses casos.
Quando a Violência Doméstica Afeta a Partilha de Bens
De forma geral, a partilha de bens segue o regime de bens escolhido no casamento ou na união estável, comunhão parcial, comunhão universal, separação total ou outro regime.
No entanto, quando há violência doméstica, o cenário muda de forma significativa.
A Lei Maria da Penha reconhece que a violência doméstica e familiar vai além da agressão física. Ela pode ser:
- Psicológica, como ameaças, humilhações, manipulação e isolamento;
- Patrimonial, como destruição de bens, retenção de documentos ou controle financeiro;
- Moral ou sexual, envolvendo condutas que atentam contra a dignidade da vítima.
Nesses contextos, o Judiciário pode determinar medidas urgentes que afetam diretamente o uso e a partilha dos bens, especialmente quando o objetivo é proteger a vítima e evitar o enriquecimento injusto do agressor.
Como a Lei Maria da Penha Interfere na Partilha
A Lei Maria da Penha (art. 22, inciso V) autoriza o juiz a adotar medidas que protejam o patrimônio da mulher, incluindo:
“A restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida, bem como a proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum.”
Isso significa que o juiz pode:
- Impedir o agressor de vender, alugar ou transferir bens do casal;
- Determinar o bloqueio de contas conjuntas;
- Garantir que a vítima permaneça no imóvel até a conclusão da partilha;
- E até restringir o uso de veículos, imóveis e objetos pessoais quando houver risco de prejuízo ou retaliação.
Essas medidas não substituem a partilha definitiva, mas preservam o patrimônio enquanto o processo de separação ou divórcio é conduzido.
Afastamento do Agressor do Lar e o Direito ao Imóvel
Em muitos casos, o juiz pode determinar o afastamento imediato do agressor do lar conjugal, como forma de proteção da vítima e dos filhos.
Essa medida, prevista no artigo 22, II, da Lei Maria da Penha, não altera automaticamente a propriedade do imóvel, mas garante o uso exclusivo do bem para quem sofreu a violência, ao menos até que a partilha seja definida.
Exemplo prático:
Maria vivia em união estável sob o regime de comunhão parcial de bens. Após anos de agressões, pediu medida protetiva e o juiz determinou que o companheiro deixasse o lar.
Mesmo que o imóvel tenha sido comprado durante a união (e, portanto, pertença a ambos), Maria pode continuar morando nele até a conclusão da partilha. O agressor, por sua vez, não pode vender nem alugar o bem.
Essa medida não significa que a vítima “ganhou” a casa, mas impede o agressor de usá-la como forma de ameaça ou controle.
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O Que Acontece com os Bens Após o Divórcio ou a Dissolução da União Estável
Após o término da relação, a partilha deve observar o regime de bens que vigorava no casamento ou união estável:
1. Comunhão parcial de bens
Os bens adquiridos durante a convivência são divididos igualmente, independentemente de quem comprou.
Entretanto, em casos de violência doméstica grave, há decisões judiciais que reconhecem o abuso como causa de exclusão parcial de direitos, evitando o enriquecimento indevido de quem cometeu agressões reiteradas.
2. Comunhão universal
Todo o patrimônio, anterior e posterior à união, entra na divisão.
Porém, o agressor pode perder o direito à meação se comprovado que agiu com dolo para dilapidar bens, ocultar patrimônio ou causar dano à vítima.
3. Separação total de bens
Em regra, não há partilha. Cada um mantém o que está em seu nome.
Mesmo assim, pode haver indenização se for provado que um dos parceiros enriqueceu às custas do outro, especialmente em contextos de dependência financeira e isolamento.
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Violência Patrimonial e a Proteção dos Bens da Vítima
A violência patrimonial é uma das formas mais silenciosas e comuns de agressão.
Ela ocorre quando o agressor controla o dinheiro, destrói bens, impede o acesso a recursos ou utiliza o patrimônio da vítima para exercer poder e dominação.
Exemplos comuns incluem:
- Esconder documentos pessoais ou escrituras;
- Vender bens sem consentimento;
- Usar o dinheiro da parceira para fins próprios;
- Recusar-se a dividir lucros ou rendimentos;
- Impedir que a vítima trabalhe.
Nesses casos, o juiz pode determinar o bloqueio imediato de valores e bens e restituição de tudo o que foi indevidamente retirado.
O objetivo é garantir que a vítima tenha acesso à parte que lhe cabe, mesmo antes da conclusão do processo.
É Possível Excluir o Agressor da Partilha?
A exclusão completa do agressor da partilha não é automática, depende da gravidade da conduta e da prova dos prejuízos patrimoniais ou morais causados à vítima.
O Código Civil (art. 1.814) prevê hipóteses em que alguém pode ser excluído da sucessão por indignidade, mas não há previsão direta para a perda de meação em razão de violência doméstica.
Mesmo assim, a jurisprudência vem evoluindo para reconhecer o abuso como fator de desequilíbrio patrimonial.
Em alguns casos, tribunais já decidiram que o agressor não tem direito à parte do bem adquirido com recursos da vítima, especialmente quando há prova de que ele destruiu, desviou ou se apropriou de valores de forma dolosa.
Em outras palavras, a violência pode influenciar a forma de partilhar, ainda que não elimine por completo o direito à meação.
A Importância das Provas no Processo de Partilha
Para que a violência doméstica tenha reflexo na divisão de bens, é essencial produzir provas, tanto da agressão quanto de eventuais prejuízos patrimoniais.
As provas mais comuns incluem:
- Boletins de ocorrência e medidas protetivas;
- Relatórios médicos e psicológicos;
- Comprovantes de transferências, recibos e extratos bancários;
- Mensagens, e-mails e testemunhos que demonstrem o controle financeiro ou destruição de bens.
O ideal é que a vítima procure orientação jurídica o quanto antes, para que o advogado possa reunir as provas corretamente e pedir medidas urgentes de preservação patrimonial.
O Papel do Juiz e do Ministério Público
Em situações de violência doméstica, o juiz atua não apenas como mediador de um conflito patrimonial, mas como garantidor da integridade e segurança da vítima.
O Ministério Público também tem papel importante, podendo intervir para fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas e defender o interesse público.
Em casos mais graves, a partilha pode ser suspensa até que se encerre o processo criminal contra o agressor, especialmente quando há suspeita de fraude ou ocultação de bens.
Partilha Amigável: É Possível Mesmo com Violência?
Em tese, a partilha amigável só é viável quando há segurança emocional e ausência de coação.
Nos casos de violência doméstica, é comum que a vítima não tenha condições psicológicas ou físicas de negociar diretamente com o agressor.
Por isso, a mediação e o acordo extrajudicial não são recomendados nesses contextos, a menos que haja garantias de proteção e acompanhamento jurídico.
A prioridade é sempre a segurança da vítima e de seus filhos, e não a rapidez do processo.
Leitura recomendada: Acordo de Partilha de Bens: Quando Fazer e Como Formalizar?
Herança e Violência Doméstica: Há Reflexos?
Embora o foco aqui seja a partilha, é importante lembrar que a violência doméstica também pode gerar efeitos sucessórios.
De acordo com o art. 1.814 do Código Civil, quem comete crime doloso contra o cônjuge ou companheiro pode ser declarado indigno de herdar seus bens.
Assim, o agressor pode perder o direito à herança, reforçando o entendimento de que a violência fere não apenas o corpo, mas a própria base da convivência familiar e patrimonial.
Resumo: Pontos Principais sobre Partilha de Bens e Violência Doméstica
- A violência doméstica pode afetar diretamente o uso e a partilha dos bens.
- O juiz pode afastar o agressor do lar e bloquear bens comuns.
- O regime de bens (comunhão, separação etc.) continua valendo, mas pode haver limitações ou ajustes quando há abuso.
- A vítima tem direito de permanecer no imóvel até decisão definitiva.
- Provas documentais e medidas protetivas são fundamentais.
- Em situações graves, o agressor pode perder parte da meação ou direito à herança.
- A prioridade é sempre proteger a vítima e garantir sua dignidade patrimonial e emocional.
Perguntas Frequentes
A vítima de violência doméstica perde o direito aos bens do casal se sair de casa?
Não. O afastamento do lar não implica perda de direitos patrimoniais. A vítima continua tendo direito à sua parte, conforme o regime de bens.
Posso pedir para bloquear os bens do agressor?
Sim. O juiz pode determinar o bloqueio de bens e contas para impedir fraudes ou dilapidação do patrimônio comum.
É possível excluir totalmente o agressor da partilha?
A exclusão total é rara, mas pode ocorrer se houver prova de que ele agiu de forma dolosa para destruir ou ocultar bens.
E se o agressor usar meu nome para contrair dívidas?
Dívidas contraídas sem benefício para o casal e sem consentimento podem ser desconsideradas na partilha.
Posso continuar morando na casa até a decisão final?
Sim. A vítima pode ter o uso exclusivo do imóvel por determinação judicial, até a conclusão da partilha.
Conclusão
A partilha de bens em casos de violência doméstica exige sensibilidade e firmeza do Judiciário.
Mais do que dividir patrimônio, trata-se de proteger vidas e restabelecer dignidade.
A Lei Maria da Penha, somada à atuação de juízes, promotores e advogados, tem o papel de garantir que a vítima não seja revitimizada pela injustiça patrimonial.
Por isso, quem enfrenta uma situação de violência deve buscar apoio jurídico especializado o quanto antes. A justiça pode ser lenta, mas é um instrumento poderoso de reparação e segurança.
Fontes de referência:





